QUANDO O JUÍZO ENTRA DE FÉRIAS 2

Mark Morais
NO ARTIGO ANTERIOR FALAMOS SOBRE AS FÉRIAS DA SUPREMA CORTE AMERICANA e sobre como as decisões dos Justices (ministros), anunciadas no final do ano de trabalho, podem ser bastante contraditórias e afetam a vida da comunidade jurídica. Hoje falaremos sobre uma dessas decisões, relacionada ao direito imigratório. Trata-se do caso Department of State versus Muñoz.
Sandra Muñoz é uma cidadã americana, residente na Califórnia, que, em 2010, casou-se com Luis Asencio-Cordero, salvadorenho que vivia nos EUA sem documentação, ou seja, de maneira ilegal. Até aí, tudo normal; incontáveis estrangeiros vivem ilegalmente na América sem maiores problemas. Como o amor é lindo e os dois pombinhos desejavam, obviamente, viver o sonho americano e serem felizes para sempre, buscaram regularizar a situação de Luis; com esse projeto em mente, Sandra Muñoz requereu junto ao USCIS a classificação de seu amado Asencio-Cordero como parente imediato de cidadã americana. Mas como o Luis entrou nos EUA sem ser inspecionado e admitido, ele não poderia terminar o seu processo dentro dos EUA via ajustamento de status (talvez pudesse fazê-lo nos dias de hoje com o anúncio da nova ordem executiva da Casa Branca em 17 de junho de 2024 – mas isso é matéria para um outro artigo). Pois bem, a petição de família foi aprovada, e Luis viajou, feliz, direto da Califórnia ao consulado americano em San Salvador para, agora na condição de cônjuge de uma cidadã americana, requerer seu visto de residência permanente, o chamado green card (pois como dito acima, o procedimento de legalização não pode se dar com o estrangeiro localizado em solo americano); foi quando as coisas começaram a dar muito errado. Para surpresa do casal, o pedido foi negado pelo oficial consular em razão do “conhecimento, ou da razoável suspeita”, por parte do avaliador, “de que o candidato deseja entrar nos Estados Unidos para se envolver exclusivamente, principalmente, ou incidentalmente, em determinados crimes ou em qualquer outra atividade ilegal”. Acontece que nosso amigo Luis já havia sido preso por conta de uma briga. E, para piorar, possui algumas tatuagens espalhadas pelo corpo, que chamaram a atenção do oficial e o levaram a acreditar que nosso herói seria membro da Mara Salvatrucha, a famigerada MS-13, violenta gangue salvadorenha. Além disso, alegando questões de segurança nacional, o oficial não publicou as informações que o levaram a concluir pela negativa do visto.
O casal recorreu administrativamente da decisão do oficial consular, que foi confirmada pelo Departamento de Estado americano; a negativa levou Sandra (por uma estranha coincidência, advogada de direitos humanos) a ingressar com uma ação judicial contra o parecer administrativo; o processo foi distribuído para o 9º Circuito de Apelações, sob cuja jurisdição se encontra o estado da Califórnia; de perfil bastante liberal, o 9º Circuito deu sentença favorável aos pombinhos, sob o argumento de que o devido processo legal estaria sendo descumprido na medida em que as razões da negativa do visto não tiveram a necessária publicidade; além disso, na condição de cidadã americana, Sandra Muñoz estaria se valendo de um direito constitucionalmente garantido ao pleitear o visto do marido. Mediante apelação do Departamento de Estado, o caso foi parar na Suprema Corte, a qual reverteu a decisão do Circuito de Apelações e manteve a negativa do visto, para desespero do casal e êxtase de absolutamente todos os oficiais consulares americanos espalhados pelo mundo; afinal, se essa turma já se achava verdadeiros deuses, agora, com a chancela de ninguém menos que a mais alta esfera da justiça dos EUA, passou a ter certeza disso.
O leitor poderá se perguntar: como essa decisão pode ser contraditória, se cancelou a decisão do Circuito de Apelações, confirmando a antiga doutrina da “consular non-reviewability”, quer dizer, de impossibilidade de revisão das decisões administrativas dos oficiais consulares pela via judicial (de acordo com essa doutrina, a decisão de admitir ou excluir um estrangeiro, tomada por um oficial executivo, é “final e conclusiva” e não está sujeita à revisão judicial em cortes federais)?
A resposta é simples, Pequeno Gafanhoto: a sentença da Suprema Corte não contrariou, com todas as letras, a referida doutrina, ou seja: a “non-reviewability”, a impossibilidade das decisões consulares, continua valendo; contudo, ao mesmo tempo a decisão estabeleceu que essa “impossibilidade” não é assim tão “impossível”, ou seja, sim, existem situações em que estas decisões podem ser passíveis de reversão pela via judicial. As hipóteses para isso são mínimas, somente aplicáveis em casos excepcionais, quando a decisão contestada viola os direitos constitucionais de um cidadão americano. Sandra Muñoz alegou que a negativa do visto ao seu marido atingia, não a ele somente, mas a um direito dela enquanto cidadã dos EUA, qual seja: o direito implícito, não escrito, de trazer seu marido não-cidadão para os Estados Unidos; direito esse que estaria “profundamente enraizado na História e tradição do país”.
Nice try: a tentativa foi boa, Dona Sandra, mas os Justices (juízes da Suprema Corte) não caíram nessa, entendendo que os direitos de Sandra como cidadã incluíam, obviamente, o de se casar com quem ela bem entendesse; porém, se nem os sogros não são obrigados a gostar dos genros, muito menos os Estados Unidos seriam obrigados a conceder a cidadania ao seu marido estrangeiro, muito menos a recebê-lo de braços abertos, especialmente contrariando a análise administrativa dos órgãos competentes, que haviam encontrado razões suficientes para negar o seu visto. Neste caso, o pacote constitucional de direitos vale somente para Sandra, não se estendendo ao tatuado Luis.
Na prática, o que a Suprema Corte está dizendo é: os oficiais consulares conhecem o seu trabalho e sabem o que estão fazendo, e nós, juízes, só podemos meter o nosso bedelho na conversa quando houver uma clara violação de direitos constitucionais.
Ou seja: Sem green card, nada feito. E os oficiais consulares continuam desfilando sua onipotência mundo afora.
Sobre Mark Morais
Mark Morais é advogado de Imigração e proprietário da Mark Morais Law Firm, escritório americano responsável por processos jurídicos de vistos e green cards para os Estados Unidos.
Mark é o único advogado brasileiro-americano que já trabalhou nas 3 principais agências federais de imigração dos EUA (USCIS, CBP e ICE) desempenhando as funções de Promotor de Imigração, Oficial de Asilo Político e Policial Federal de Imigração e Alfândega.
Mark Morais é formado em Direito e Administração de Empresas no Brasil e é Doutor em Jurisprudência nos Estados Unidos. Ele é licenciado para praticar Direito no Estado da Flórida e também na Capital Federal (District of Columbia).
Continue por dentro das novidades no blog e no insta @markmoraislaw